sábado 23 de noviembre de 2024
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EL DERECHO MORAL A LA INTEGRIDAD DE LA OBRA DE ARTE: DERECHO HUMANO PROTECTOR DE LA DIGNIDAD DEL CREADOR INTELECTUAL

EL DERECHO MORAL A LA INTEGRIDAD DE LA OBRA DE ARTE: DERECHO HUMANO PROTECTOR DE LA DIGNIDAD DEL CREADOR INTELECTUAL

 

O DIREITO MORAL À INTEGRIDADE DA OBRA DE ARTE PLÁSTICA: DIREITO HUMANO PROTETIVO DA DIGNIDADE DO CRIADOR INTELECTUAL

THE MORAL RIGHT TO THE INTEGRITY OF THE WORK OF ART: HUMAN RIGHT PROTECTIVE OF THE DIGNITY OF THE INTELLECTUAL CREATOR

 

 

Rodrigo Moraes[1]

 

RESUMEN: El presente estudio analiza el derecho moral a la integridad de la obra de arte plástica, considerándolo como uno de los derechos humanos previstos en la Declaración Universal de los Derechos Humanos de 1948.

 Palabras clave: Derechos morales de autor; derechos humanos; derecho moral a la integridad de la obra.

ABSTRACT: The present study analyzes the moral right to the integrity of the work of plastic art, considering it as one of the human rights provided for in the Universal Declaration of Human Rights, of 1948. Keywords: Moral rights; human rights; moral right to the integrity of the work.

 

No Brasil, o governo do então presidente da República Jair Bolsonaro (2019-2022) foi marcado por uma postura hostil em relação aos artistas e à cultura. Com a posse do ex-presidente, o Ministério da Cultura foi extinto pela medida provisória nº 870, de 1º de janeiro de 2019, passando a ser uma mera secretaria ligada ao Ministério da Cidadania e, de­pois, ao Ministério do Turismo. Numa relação bastante tumultuada com a classe artística, Jair Bolsonaro chegou a nomear cinco secretários da Cultura em tão somente um ano e meio de mandato.

Em janeiro de 2023, a pasta do Ministério da Cultura foi recriada no início do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A atual ministra da Cultura do Brasil é cantora baiana Margareth Menezes.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, escrita sob os efeitos das terríveis crueldades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, foi proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em Paris, em 10 de dezembro de 1948. O seu art. 27 garante: “Todos têm direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor”. Portanto, os direitos morais foram erigidos a direitos humanos.

Se o criador intelectual tem direitos morais de autor, possui também deveres, tendo em vista que a liberdade de expressão não é um direito ilimitado. O Supremo Tribunal Federal brasileiro, por exemplo, no Habeas Corpus nº 82424-RS (caso Ellwanger), decidiu que o autor não tinha o direito de invocar a liberdade de expressão para publicar obra literária negacionista do Holocausto e que discriminava a comunidade judaica.

Os direitos morais de autor não estão expressamente previstos no art. 5º da Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988. Mas não se pode anuir com a opinião de que a Constituição brasileira protegeria apenas os direitos patrimoniais de autor. Os direitos morais do autor estão, sim, garantidos na Constituição Federal de 1988, ainda que de maneira implícita, fazendo-se uma interpretação sistemática do texto constitucional. Se o legislador constituinte não fez referência expressa aos direitos morais – merecendo, por isso, críticas –, não se pode concluir que não há qualquer abrigo constitucional.

Acertada é a lição de Silmara Juny de Abreu Chinellato, quando, em sua tese para Concurso de Professora Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), afirma que “não seria razoável admitir que a Constituição Federal apenas reconhecesse os direitos patrimoniais, no emprego da expressão ‘direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras’, pois todas as formas pelas quais o autor delas dispõe implicam reconhecimento de direitos morais”.

Segundo a civilista, “não há compartimentação entre direitos patrimoniais e direitos morais, pois uns repercutem nos outros”. Na sua visão, “a Constituição Federal não tratou expressamente dos direitos morais porque não era preciso. Os direitos morais e patrimoniais são vertentes do direito de autor e a tutela jurídica não poderá amparar uns e afastar os outros”.[2]

O princípio da dignidade da pessoa humana, disposto no art. 1º, III, da Constituição Federal da República Federativa do Brasil, que possui aplicabilidade direta, obriga a uma releitura da legislação autoral. Deve-se interpretar a vigente lei de direitos autorais brasileira – Lei 9.610/1998 – à luz da Constituição, e não o contrário.

Os direitos morais são prerrogativas extrapatrimoniais que visam a salvaguardar tanto a personalidade do autor quanto a obra intelectual em si mesma, por ser esta uma projeção do espírito de quem a criou. Em outras palavras, tais direitos visam a proteger criador e criação. Esta constitui um reflexo da personalidade daquele, e, consequentemente, uma emanação de sua própria dignidade como pessoa humana.

O direito moral à integridade é a prerrogativa de o autor assegurar a integridade da obra, opondo-se à modificação, deformação ou mutilação desautorizadas, que possam atingi-lo, como ser humano, em sua dignidade.

No Brasil, o direito moral à integridade da obra está previsto no art. 24, IV, da Lei 9.610/1998: “Art. 24. São direitos morais do autor: IV – o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra”.

No México, o direito moral à integridade da obra encontra-se na Ley Federal de Derecho de Autor, de 1996: “Artículo 21. Los titulares de los derechos morales podrán en todo tiempo: III. Exigir respeto a la obra, oponiéndose a cualquier deformación, mutilación u otra modificación de ella, así como a toda acción o atentado a la misma que cause demérito de ella o perjuicio a la reputación de su autor”.

Na seara das artes plásticas, o direito à integridade possui enorme interesse prático. As telas, esculturas, murais e painéis, em regra, possuem existência única. A unicidade gera o seguinte conflito: direito do autor à integridade da obra versus direito de propriedade do possuidor do suporte material. Portanto, o caráter único do exemplar da obra de artes plásticas faz com que se agrave a colisão entre esses dois direitos.[3]

O poeta português Fernando Pessoa, não confundindo livro (bem corpóreo) com obra literária (bem incorpóreo), disse: “Livros são papéis pintados com tinta”. De fato, o corpus mechanicum (livro) não se confunde com o corpus mysticum (obra imaterial, o texto em si).

A obra literária – realidade incorpórea – não se confunde com o suporte material. O legislador brasileiro de 1973, todavia, em flagrante equívoco, dizia, no art. 6º, I, que “os livros” eram obras intelectuais protegidas (Lei 5.988/1973). Ora, não é o livro (suporte) que é protegido pelo Direito Autoral, mas a obra literária, ou seja, o texto. Protege-se o corpus mysticum (o texto). Daí o personagem Quincas Borba, do homônimo romance de Machado de Assis, ter dito: “Vês este livro? É Dom Quixote. Se eu destruir o meu exemplar, não elimino a obra, que continua eterna nos exemplares subsistentes e nas edições posteriores”. Quincas Borba falava, portanto, do corpus mysticum (texto) e não do corpus mechanicum (suporte). Falava da famosa obra literária de Cervantes (corpus mysticum), e não do formato impresso da obra (corpus mechanicum). A vigente Lei de Direitos Autorais brasileira, Lei 9.610, de 1998, reparou essa atecnia, afirmando, em seu art. 7º, I, que são obras protegidas “os textos de obras literárias, artísticas ou científicas”.

Nas artes plásticas, contudo, não é simples traçar essa diferenciação entre suporte (corpus mechanicum) e obra (corpus mysticum). Os dois elementos, na prática, confundem-se. São indissociáveis. Se a destruição de um livro não consiste na destruição da obra literária propriamente dita, não se pode dizer o mesmo na seara de artes plásticas. A destruição de uma tela (do suporte) não deixa de ser o aniquilamento da obra em si. Enquanto uma obra literária, geralmente, tem vários exemplares, não se pode dizer o mesmo de uma obra de arte plástica.

As telas, esculturas e murais, em regra, têm existência única. Portanto, a unicidade gera o seguinte conflito: direito do autor à integridade da obra versus direito de propriedade do possuidor do suporte material. Portanto, o caráter único do exemplar da obra de arte plástica faz com que se agrave a colisão entre esses dois direitos.

Pergunta-se: pode o proprietário de um quadro destruí-lo sob qualquer justificativa?

Ferreira Gullar, criticando os arautos contemporâneos da “arte efêmera”, traz profunda reflexão:

“Certo dia, um artista espanhol que vivera no Brasil encontrou-me num avião da ponte-aérea Rio-São Paulo e aproveitou a ocasião para mostrar-me um livro com fotos de seus trabalhos. Uma das fotos era de um parque de grama verde que ele cobrira com manchas de tinta azul.

– Você não destruiu o gramado do parque, não?

– Claro que não, a primeira chuva lavou a tinta.

– E apagou sua obra.

– É…

A outra foto mostrava uma exposição, numa galeria envidraçada, de grandes raízes de árvores, ainda impregnadas de terra.

– O que fez com essas raízes depois da exposição? – perguntei-lhe.

– Joguei-as fora, respondeu ele.

– Quer dizer que tudo o que você tem feito não vai sobrar nada?

– Vivemos na civilização do efêmero, descartável. Nada mais é feito para durar. A arte tem de seguir o espírito da época.

– Será que tem mesmo? – indaguei.

[…]

A teoria da arte efêmera toca numa questão essencial, já que a arte tornou-se, através dos séculos, a expressão do que de mais permanente o homem criou. As obras de arte – os templos, as esculturas, os murais – do Antigo Egito são a própria imagem daquela civilização. O mesmo pode-se dizer das artes grega ou romana, e o mesmo da arte dos períodos mais próximos de nós, de tal modo que se chega a afirmar que não há civilização sem arte e que a arte é uma das expressões mais genuínas de cada povo e de cada cultura. Mas não apenas isto: a arte constitui a nossa memória e nossa herança, pois através dela as civilizações nos ensinam e nos constituem como seres humanos.

[…]

Fazer da arte expressão do efêmero é chover no molhado. Efêmero somos nós mesmos e quase tudo em nossa volta. Uma das maiores angústias do ser humano é precisamente a consciência de sua efemeridade e, por essa razão, procura de todos os modos fundar alguma coisa que permaneça. A arte, que possivelmente não nasceu com essa missão, revelou-se o instrumento ideal desta batalha contra a morte e a precariedade.

Trata-se, a rigor, de uma batalha vã, porque os próprios artistas morrem e morrem também as civilizações. Não obstante, as obras de arte restam como o testemunho de sua existência, de sua busca de beleza, de sua tentativa de inventar-se imortal. Na civilização da mercadoria e da obsolescência planejada dos objetos industriais, a tendência é aderir ao consumismo, que é a expressão mais aguda da alienação.

[…]

O efêmero, neste caso, é um fenômeno provocado deliberadamente para manter crescentes as vendas. […]

Como não poderia deixar de ser, à medida que o capitalismo desenvolveu suas potencialidades, influi crescentemente sobre a atividade artística. O surgimento do mercado de arte transformou a obra de arte em mercadoria e fez atuar sobre ela as mesmas forças que atuam sobre as demais mercadorias.

[…]

A arte conceitual não propõe nada. Apenas adotou, como fundamento ideológico, o caráter efêmero que o consumismo impôs à sociedade atual.

Mas o artista verdadeiro resiste ao oportunismo do momento, não desiste da audácia de tentar fundar o permanente e criar o maravilhoso”.[4]

A filósofa Hannah Arendt (1906-1975), em sua obra “A condição humana”, explica a característica da perenidade das obras de artes plásticas:

“O devido relacionamento do homem com uma obra de arte não é “usá-la”; pelo contrário, ela deve ser cuidadosamente isolada de todo o contexto dos objetos de uso comuns para que possa galgar o seu lugar devido no mundo. […]

Assim, a durabilidade das obras de arte é superior àquela de que todas as coisas precisam para existir; e, através do tempo, pode atingir a permanência. Nesta permanência, a estabilidade do artifício humano, que jamais pode ser absoluta por ser o mundo habitado e usado por mortais, adquire representação própria. Nada como a obra de arte demonstra com tamanha clareza e pureza a simples durabilidade deste mundo de coisas; nada revela de forma tão espetacular que este mundo feito de coisas é o lar não-mortal de seres mortais. É como se a estabilidade humana transparecesse na permanência da arte, de sorte que certo pressentimento de imortalidade – não a imortalidade da alma ou da vida, mas algo imortal feito por mãos mortais – adquire presença tangível para fulgurar e ser visto, soar e ser escutado, escrever e ser lido”.[5] 

A sociedade contemporânea precisa aprender a conjugar alguns verbos: cuidar, conservar, guardar, preservar, proteger, velar, vigiar, zelar… Saber cuidar, em última análise, é saber viver sob uma nova ótica: não mais numa relação sujeito-objeto (utilitarista), mas sujeito-sujeito (de alteridade).

As obras de arte plástica são projeções de personalidades. Irradiações irrepetíveis de espíritos criativos. Representam não somente autores, mas nossa própria história. Descuido e descaso são sintomas de nosso tempo. O ocaso desse descaso virá a partir da valorização da pessoa humana, destinatário-mor do Direito Autoral.

Carlos A. Villalba e Delia Lipszyc lecionam: “el propietario del soporte material de una obra artística original (pintura, dibujo, escultura, etc.) o de un manuscrito debe respetar el derecho de integridad y, por consiguiente, no tiene la facultad de destruirlos”.[6]

Greco, citado por Adriano de Cupis, afirma:

“[…] Dada a indissociabilidade, em uma obra de arte figurativa, do corpus mysticum e do corpus mechanicum […], a destruição deste último importa irremediavelmente a destruição daquele (pois que, se apesar de tudo o autor quisesse e pudesse produzir outro original igual, tratar-se-ia sempre de uma obra diferente, criada em diferente e vinculado estado de espírito e de concepção, e talvez de nível inferior, como são habitualmente as imitações, e mais ainda as auto-imitações). Ora, o interesse moral máximo do autor é que a sua obra sobreviva, e não se transforme em simples recordação; por isso, não se pode dizer que a destruição da obra não ofenda gravemente tal interesse, e não se produza suma ofensa à personalidade do autor”.[7]

Bruno Jorge Hammes narra um célebre caso ocorrido na Alemanha, no início do século XX, em que houve uma pintura em cima de outra pintura, num imóvel situado na cidade de Berlim: “o proprietário de uma casa encarregou um pintor de fazer uma pintura numa das paredes internas. Era uma paisagem em que aparecia uma ninfa nua. Mais tarde, o proprietário vendeu a casa, e o novo proprietário achava aquela pintura inconveniente para o seu lar e chamou outro pintor para colocar vestes na ninfa”. [8] O autor da obra em sua forma primígena entendeu que houve mutilação e teve o seu direito reconhecido. O caso “Felseneiland mit Sirenen”, julgado pela Suprema Corte alemã (Reichsgericht) em junho de 1912, é considerado como o precursor dos direitos da personalidade do autor na Alemanha.[9]

Philadelpho Azevedo, em 1930, noticiou um litígio ocorrido na Itália, no início do século XX:

“O tribunal de Florença ordenou a indenização dos danos morais sofridos por um pintor, que viu sua obra, feita na parede de um palácio, modificada pelo dono, sendo que a alegação de se tratar de casa particular e, portanto, de exposição restrita, importava em mera atenuante para o cálculo daqueles – a imodificabilidade constituía uma obligatio propter rem (Riv. Cit., 1910 – parte II, pg. 1079)”.[10]

Outras decisões judiciais versando sobre direito à integridade, ocorridas na Europa, são noticiadas pela doutrina autoralista.[11]

No México, é bastante conhecido o entrevero entre Diego Rivera e Nelson Rockfeller, em Nova York, no ano de 1933. Rockefeller contratou o artista plástico mexicano Diego Rivera (1886-1957) para criar o mural de entrada da Radio Corporation of America (RCA), atual Rockefeller Plaza.

A obra, bastante elogiada por críticos de arte da época, foi intitulada El hombre en una encrucijada (Man at the Crossroads). Gerou fortes e imediatos protestos da imprensa norte-americana, por conter a imagem de Vladimir Lênin, chefe do Partido Comunista da União Soviética e, naquela época, inimigo “número um” do capitalismo. Tal imagem não existia no desenho preliminar aprovado pela comissão. A família do milionário petroleiro Rockefeller não admitiu a “propaganda anticapitalista”, mas pagou ao autor o valor acordado de U$ 21.000 (vinte e um mil dólares).

Diego Rivera, apesar da forte pressão sofrida, recusou a retirar a imagem de Lênin. Então, em fevereiro de 1934, o ainda inconcluso mural foi destruído. Naquele mesmo ano, decepcionado com a atitude norte-americana, Rivera retornou ao México com sua esposa Frida Kahlo (1907-1958) e pintou uma nova versão de El hombre en una encrucijada, no Palácio de Belas Artes do México, no qual se encontra até hoje. O novo mural, bem semelhante ao que havia pintado em Nova York, passou a conter um detalhe curioso: a imagem de Rockefeller ao lado das enfermidades sexuais.

O episódio Rivera versus Rockfeller é contado nos filmes O povo vai dançar (Cradle Will Rock), de 1999, dirigido por Tim Robbins, e Frida, de 2003, dirigido por Julie Taymor. Eis o trecho desta última película referente à calorosa discussão entre o filho de Rockfeller e o artista Diego Rivera:

“– Sr. Rivera, devo insistir que reconsidere sua posição.

– Não vou comprometer minha visão.

– Neste caso, eis sua comissão, paga integralmente. Mas está demitido.

– É minha pintura!

– Na minha parede.

– É do povo, seu cretino!”  

Houve, sem dúvida, inadimplemento contratual. Ou seja, Diego Rivera colocou, na obra, a imagem de Lênin, que não constava no projeto original, aprovado por Rockfeller. Assim, tinha consciência de que aquela imagem provocaria, no mínimo, polêmica.

Ora, estampar a imagem de Lênin, na década de 30, no centro do capitalismo mundial, seria como, nos dias de hoje, estampar a imagem de Exu (orixá) em templos da Igreja Universal do Reino de Deus situados na Cidade do Salvador. A confusão seria inevitável.

Todavia, ainda que seja bastante discutível a existência ou não de violação ao direito moral à integridade, o referido filme Frida serve, ao menos, para ilustrar o sentimento de impotência, revolta e tristeza vivido por Diego Rivera.

A destruição de sua obra inconclusa El hombre en una encrucijada representou a mutilação de sua própria personalidade. Ao reconstruir o mural na Cidade do México, em 1934, Diego Rivera visou recompor seu espírito criativo. A obra repintada, graças à ajuda de fotografias feitas antes da destruição em Nova York, encontra-se no Palácio de Belas Artes, na capital mexicana, sob o título de El hombre controlador del universo.[12] A confrontação entre mundo capitalista e socialista é brutal. Rivera, ao representar John D. Rockefeller Jr. bebendo em meio a cenas de apostas e excessos, criticou o sistema capitalista.

O chamado Acordo TRIPS (Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights) é traduzido como Acordo Sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (ADPIC), no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). Importante noticiar o reiterado posicionamento refratário dos Estados Unidos em relação aos direitos morais de autor. No art. 9.1 do Acordo TRIPS, há exclusão expressa do artigo “6 bis” da Convenção de Berna. Essa postura patrimonialista, insubmissa aos direitos morais, entra em rota de colisão com a ideia-mestra deste estudo.

Maristela Basso comenta essa aversão norte-americana aos direitos extrapatrimoniais de autor:

“Os Estados Unidos quando incorporaram a Convenção de Berna no seu direito interno, em 1989, no Berna Convention Implementation Act, excluíram os direitos morais do autor, assumindo posição quase que solitária relativamente a outros países desenvolvidos.

A posição americana se refletiu nas negociações da Rodada do Uruguai, e o resultado foi uma clara concessão feita aos Estados Unidos, no art. 9.1 do TRIPS: ‘Os Membros cumprirão o disposto nos Artigos 1 a 21 e no Apêndice da Convenção de Berna (1971). Não obstante, os Membros não terão direitos nem obrigações, neste Acordo, com relação aos direitos conferidos pelo Artigo 6 ‘bis’ da citada Convenção, ou com relação aos direitos dela derivados’.

Esta parte do dispositivo que não obriga os Estados partes do TRIPS a observarem os direitos morais dos autores (art. 6 bis da Convenção de Berna) equivale ao que chamamos de ‘Berna-Menos’, ou seja, o TRIPS estabelece um nível de proteção inferior ao da Convenção referida”.[13]

A genial artista plástica mexicana Frida Kahlo (1907-1958), em 20 de outubro de 1948, enviou uma carta ao então presidente do México, Miguel Alemán, protestando contra a prática de atos que estavam atingindo a reputação de seu esposo Diego Rivera. Trata-se, sem dúvida, de um repúdio público contra a violação ao direito moral à integridade:

“Esta carta é um protesto de justificada indignação que quero transmitir-lhe, contra um crime covarde e humilhante que vem sendo perpetrado neste país.

Refiro-me ao ato intolerável e sem precedentes que os donos do Hotel del Prado estão cometendo, ao cobrirem de tábuas de madeira a pintura mural de Diego Rivera no Salão de Jantar daquele hotel.

[…] Esse tipo de crime contra a cultura de um país, contra o direito que tem todo homem de expressar suas ideias, esses ataques criminosos contra a liberdade, só foram cometidos em regimes como o de Hitler, e continuam a ser cometidos no de Francisco Franco, como o foram, no passado, durante a tenebrosa e negativa época da “Santa” Inquisição.

[…] É uma vergonha a simples ideia dessa violação.

Há uma coisa que não está escrita em nenhum código: é a consciência cultural de um povo, que não permite que a Capela Sistina de Michelangelo seja transformada num prédio de apartamentos. […]

Uma palavra sua àqueles donos de hotel será um vigoroso exemplo na história da liberdade, conquistado em benefício do México. […]

Se o senhor não agir como um autêntico mexicano neste momento crítico, defendendo seus decretos e direitos, então, que comece a queima dos livros de ciência e de história; que as obras de arte sejam destruídas a pedradas ou em incêndios; que os homens livres sejam expulsos do país; que venha a tortura, bem como as prisões e os campos de concentração. […]

Agora, escrevo-lhe para cumprimentá-lo e para lhe recordar que, acima de tudo, somos mexicanos, e não permitiremos que ninguém, especialmente os donos de hotel de estilo ianque, monte no cangote da Cultura do México, raiz essencial da vida de nosso país, assim denegrindo e subestimando nossos valores nacionais de significação mundial, transformando uma pintura mural de transcendência universal numa pulga enfatiotada”.[14]

No Brasil, importante relembrar o processo de Juarez Paraiso contra a Igreja Evangélica Renascer em Cristo. Nos primeiros dias do mês de maio de 2000, na Cidade do Salvador, capital da Bahia, dois murais de autoria do consagrado artista plástico baiano Juarez Paraiso, Professor aposentado da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, que se situavam nos Cines Art 1 e 2, Politeama, representando Oxumaré e Iemanjá, entidades do culto afro-brasileiro, foram destruídos a marretadas por membros da Igreja Evangélica Renascer em Cristo, que instalou no local mais um de seus inúmeros templos.[15]

Juarez Paraiso, antes da destruição, tentou entrar em contato com representantes da Igreja, na vã tentativa de persuadi-los da possibilidade da remoção e posterior aproveitamento das obras intactas. As obras poderiam perfeitamente ser transportadas e remontadas em outro lugar, conforme conclusão da prova pericial. Em um dos murais, antes de ferozmente destruído, a golpes de marreta, foi pichado: “Deus é fiel!”, revelando, data venia, absurda intolerância religiosa.[16]

Sem outra alternativa, foi ajuizada uma ação de reparação por danos morais e patrimoniais.[17] A Igreja ré contestou afirmando que “os Cines Art 1 e 2 não são o Vaticano nem Juarez Paraiso é Leonardo Da Vinci” (sic).  

Ora, a arte de Leonardo Da Vinci não é mais digna que a do mestre Juarez Paraiso. Cada artista expressa a sua verdade, a sua beleza, originalidade e missão dentro de um determinado contexto histórico. Arte é arte. Afirmar que Leonardo Da Vinci é mais digno que Juarez Paraiso é tão absurdo quanto afirmar que os alemães são mais dignos que os judeus, ou que estes são mais dignos que os palestinos.

A Igreja ré, nos autos do processo, formulou a seguinte pergunta: “O Ilustre Artista Plástico acredita que suas obras serão para a posteridade? Sem nunca serem demolidas?”

Obviamente. Todo verdadeiro artista acredita que suas obras servirão para novas gerações, tendo, assim, um compromisso ético com a posteridade. O maestro Antonio Carlos Jobim cantava: “Longa é a arte, tão breve a vida […]”. 

O ódio e o desrespeito a valores estéticos revelam que o extremismo religioso muitas vezes mistura símbolos e realidade, arte e idolatria, beleza e pecado, patrimônio local e universal. 

Toda destruição de uma obra de arte não é só da obra produzida, mas também da própria essência do ser humano. A destruição do patrimônio cultural de um povo configura a destruição do próprio espírito da nação.

A dignidade do criador reside na integridade de sua obra. Sua personalidade tanto poderá ser engrandecida como diminuída. Só mesmo Juarez Paraiso sabe o quanto sofreu por causa do surto iconoclasta da referida Igreja.

O julgador da ação, João Augusto A. de Oliveira Pinto, então juiz titular da 8ª Vara Cível do Salvador – em 2013, ele tomou posse como desembargador do TJBA –, com acerto, julgou procedente o pedido de Juarez Paraiso, condenando a Igreja ré a indenizá-lo em 170 (cento e setenta) salários mínimos, a título de danos morais e patrimoniais. Apesar de o valor da condenação ter sido ainda tímido, tendo em vista a gravidade da ofensa e a potencialidade econômica da ofensora, segunda maior Igreja neopentecostal do país, a decisão já configura um real alerta aos iconoclastas. Afirmou o magistrado baiano na fundamentação da sentença:

“O ponto nodal da vexata quaestio reside na indagação se pode ou não o novo locatário, usuário ou proprietário de imóvel, destruir obra de arte achadiça em seu interior, sem que isto importe em lesão aos direitos do artista criador da obra […]

À luz da norma protetora dos direitos autorais, respondendo à indagação acima, não pode o locatário ou novo proprietário do imóvel onde consta obra de arte (no caso, mural), simplesmente destruí-la…

No máximo, a Igreja acionada deveria contactar o Autor para que fosse por ele autorizado a transferir o mural para outro local, ou então, se não lhe atribuía a importância artística devida, devolvê-lo ao seu criador.

Lê-se em trechos dos autos certa mitigação da importância do mural como peça de arte pelos integrantes da Igreja Acionada. Mero ato de intolerância religiosa, não há dúvida. Ninguém desconhece o Autor como conceituado artista, inclusive, Lente que foi da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, expressão maior da cultura artística baiana. O mural é [era] composto de belíssimas gravuras representando entidades sagradas da religião afro-brasileira. Não é preciso crer nessas divindades, é elementar, para apreciar e reconhecer a plasticidade de invulgar brilho do traço do Mestre Juarez. O mais é preconceito inadmissível no limiar do século XXI, graças ao bom Deus, laico por excelência. […]

O Juiz não pode chegar a outra conclusão: faltou bom senso aos membros da irmandade Acionada. Mais que isso, o desconhecimento total e absoluto da lei […]; a intolerância religiosa, o desconhecimento total e absoluto dos mais comezinhos princípios da arte, a insensibilidade imensa, a incapacidade de reconhecer o belo… Por tudo isso, firmo convencimento da pertinência do pleito autoral.”

O Tribunal de Justiça do Estado da Bahia confirmou a decisão de primeiro grau, e o processo já transitou em julgado.

Juarez afirmou com sabedoria: “Esta ação desafia os conceitos anacrônicos de propriedade da sociedade capitalista. O que o Taleban fez no Afeganistão aconteceu aqui na Bahia. Não vejo diferença.”[18]

Vale lembrar que o grupo fundamentalista Taleban, que controlou mais de 90% do Afeganistão, num surto iconoclasta, ocorrido em março de 2001, destruiu duas estátuas gigantescas e milenares de Buda, provocando indignação de diversos líderes das mais variadas religiões de todo o mundo. O pretexto utilizado para a iníqua destruição foi declarado por Mohamad Omar, então líder supremo do Taleban: “Apenas Allah deve ser venerado, e as estátuas devem ser destruídas para que não sejam adoradas nem agora nem no futuro.”[19]

Importante ressaltar alguns trechos do depoimento do saudoso escritor Jorge Amado sobre Juarez Paraiso, realizado em 1976:

“Quem anda pelas ruas da cidade da Bahia, entra nos cinemas, olha fachadas de prédios, pode logo dar-se conta da importância da obra de Juarez Paraiso. No panorama da arte baiana contemporânea, a obra de Juarez Paraiso cresce a cada dia em importância e significação. Solidário com a vida, com a luta do homem, com o tempo e o chão presentes, com as vocações violentadas, com os jovens, armado em guerra contra a injustiça, a miséria, as limitações, contra tudo quanto lhe parece feio e mau. Armadura de Quixote, mas de um Quixote da era atômica. Pode enganar-se e por vezes certamente se engana, rompe lança sem sentido. Mas quase sempre abre caminhos, é o primeiro a traçar a rota para muitos. Um homem solidário, um artista solitário? Não, pois o homem e o artista são um só, um decorre do outro e o completa. Daí a obra solitária de Juarez Paraiso ser a obra mais solidária com a vida e com o ser humano.”[20]

Juarez teve outros importantes murais de sua autoria, que se encontravam no Cine Tupy e no Cine Bahia, destruídos pela Igreja Universal do Reino de Deus.

Em 1977, o filósofo Romélio Aquino protestou com profundidade sobre a bárbara destruição ocorrida no Cine Tupy:

“Aparentemente, a propriedade privada do objeto é de quem o comprou, pagou seu preço contratado […]. Todos [nós] sabemos, porém, que esse exercício “selvagem” da propriedade privada é negado pelo próprio direito que a institui e que lhe sobrepõe os limites do interesse social de sua função. Isto já bastaria para qualificar o caráter criminoso do ato em questão. […] Numa palavra: o consumo do objeto artístico/cultural é um consumo singular: tende à conservação, não à destruição. Por isso que ela sedimenta a memória dos grupos sociais e os elementos específicos das nacionalidades. Por isso também que toda destruição da cultura é sempre a destruição do espírito de um povo”.[21]

O Estado brasileiro, infelizmente, é um dos maiores violadores do direito moral à integridade da obra de arte plástica. Dois precedentes serão narrados a seguir: o processo de Yara Tupinambá contra o Município de Belo Horizonte; o processo de Ângelo Roberto contra o Instituto Baiano de Metrologia e Qualidade (IBAMETRO).

O caso de Yara Tupinambá, ocorrido em Belo Horizonte, no ano de 1988, é paradigmático precedente sobre o direito moral à integridade de obra de artes plásticas. A artista plástica mineira Yara Tupinambá recebeu do então Presidente da Câmara Municipal de Belo Horizonte, por ocasião das comemorações do 76º aniversário da capital, a encomenda da idealização e execução de um mural para figurar no Plenário da nova sede do Legislativo. A obra, perfazendo o tamanho de 32 m², foi concluída após cerca de cinco meses de trabalho, recebendo o título de “Guerra e Paz”.

A artista não trabalhou com afresco diretamente na parede. Preferiu utilizar dez placas de ocaplan (fibras prensadas de madeira), fixadas por parafusos. Portanto, tais placas seriam facilmente removíveis, na hipótese de uma futura transferência da obra.

A autora, em março de 1988, através de veículos de comunicação, tomou conhecimento de que a Câmara Municipal mudaria, novamente, para outra sede. Preocupada com a destinação de sua obra “Guerra e Paz”, procurou o então Presidente da Câmara, Paulo Portugal, para tratar do assunto. Acontece que, ocorrida a transferência da Casa Legislativa, a obra permaneceu no prédio antigo. Yara Tupinambá, a fim de prevenir responsabilidades e ressalvar direitos, notificou o referido Presidente. Este lhe assegurou que o mural fora retirado do prédio antigo e devidamente encaixotado “por pessoas altamente competentes”. A autora, todavia, não teve oportunidade de saber quais foram as pessoas responsáveis pelo encaixotamento de sua criação intelectual.

No Plenário da nova sede da Câmara, não havia espaço para a fixação da obra. O impasse foi resolvido da seguinte forma: a Secretaria de Cultura, procurada pela autora, buscou um local adequado para a colocação do mural. A Assembleia Legislativa foi escolhida para abrigá-lo.

Somente na gestão do Prefeito Pimenta da Veiga foi franqueado à autora o acesso à sua obra. Ao abrir o caixote onde se encontrava o mural, Yara Tupinambá verificou a sua total destruição. Havia placas faltando pedaços e inúmeras rachaduras. As placas foram arrancadas, com violência, por pessoas sem qualquer conhecimento técnico no assunto. “Guerra e Paz” ficou de tal forma enxovalhada que não poderia mais ser restaurada. A obra, mutilada, tornou-se irrecuperável.   

A autora ingressou, em fevereiro de 1989, com uma ação indenizatória. O juiz de primeiro grau, Valdez Leite Machado, em 26 de agosto de 1991, julgou procedente a ação, afirmando que “uma obra de arte é criada visando à eternidade, sendo a suprema recompensa do artista o aplauso sincero e a possibilidade de despertar emoções em quantos a observem”. Afirmou, ainda: “o simples fato da remoção descuidada da obra, ocasionando a sua destruição, aliada à sua guarda em local inadequado, ofendeu o direito da Autora”. O Legislativo local foi excluído da lide. Apenas o Município foi condenado.

No julgamento da Apelação, a 1ª Câmara Cível do Tribunal mineiro, à unanimidade, reformou a sentença, entendendo não ter havido qualquer dano moral à autora. Eis um trecho da equivocada decisão:

“Na verdade, a apelada em nada teve abalado seu nome artístico, pela infeliz remoção do mural de sua autoria, que, muito ao contrário, motivou manifestações de solidariedade, como as juntadas aos autos.

Diversamente do pretendido pela apelada, pois não se aplica à espécie a norma do art. 5º, X, da CF que, ao assegurar o direito à indenização por dano moral, pressupõe a existência de violação à honra ou imagem da pessoa, hipótese não ocorrente in casu, como exposto.

Pertencendo a obra de arte ao patrimônio público municipal, sobre esse repercute negativamente sua danificação, empobrecendo-o culturalmente inclusive, a denunciar o descaso e a pouca civilidade de Administradores anteriores”.

Interposto recurso especial, o Superior Tribunal de Justiça, por maioria,[22] reformou o acórdão do Tribunal de Minas, restabelecendo a sentença de primeiro grau.[23]

No voto do Ministro Hélio Mosimann, lê-se o seguinte:

“Feriu [o Município de Belo Horizonte], com seu ato irresponsável, o direito à integridade da criação intelectual, um dos elementos do direito moral do autor.

É de frisar, tão somente para esclarecer, que a alienação do corpus mechanicum transmite ao adquirente o direito de reproduzi-la[24] ou de expô-la ao público, jamais o de atingi-la em sua integridade.

Comprovada a violação a um direito moral da autora, cabível é a indenização por dano moral”.

O referido Ministro relator, acertadamente, percebeu que o ato de vilipendiar uma obra de arte consiste, ao mesmo tempo, numa agressão contra a pessoa que a criou. A criação artística consiste num prolongamento da personalidade do autor. Mutilando a obra, mutila-se, também, o espírito de quem a concebeu.

Como não se pode quebrar o indissolúvel elo entre criador e criação, não se poderia negar, no citado caso mineiro, uma violação ao direito extrapatrimonial da artista plástica Yara Tupinambá. Em outras palavras, refutando-se o dano moral, estar-se-ia rechaçando a premissa de toda a construção doutrinária do direito moral: a de que a obra consiste numa projeção do espírito criativo do autor.

Por sua vez, o artista plástico baiano Ângelo Roberto, respeitado pelo público e pela crítica especializada, com inúmeros prêmios acumulados em sua carreira, além de exposições coletivas e individuais na Bahia e em outros estados, foi contratado, em 1976, pelo então Diretor do IPEMBA (Instituto de Pesos e Medidas da Bahia), para a criação de um mural na entrada do órgão. Após a celebração do contrato, o artista trabalhou na obra durante cerca de seis meses. O mural, quando concluso, foi bastante elogiado pelo público e pela imprensa.

No início de 2000, infelizmente, Ângelo Roberto descobriu que a sua obra sofreu uma pseudo-restauração, que, inclusive, fez com que a sua assinatura (designação de autoria) fosse apagada. Indignado, o autor notificou extrajudicialmente o IBAMETRO (Instituto Baiano de Metrologia e Qualidade), autarquia estadual que sucedeu o antigo IPEMBA, sem obter, no entanto, qualquer esclarecimento ou proposta de transação preventiva de litígio. Em 28 de abril de 2000, ajuizou uma indenizatória.

 O Juízo nomeou como perito o Professor de Restauração da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, José Dirson Argolo. Ficou provado nos autos que a malfadada intervenção no mural foi feita por pessoas completamente desqualificadas. Eis alguns trechos do preciso laudo pericial:

“Existe dano à obra, principalmente na alteração de suas características pictóricas e na supressão da assinatura do artista. É notório que a obra foi vitimada por alguma intervenção sem nenhum critério, possivelmente executada por pessoa leiga […]. Houve uma simplificação das luzes e sombras, principalmente nas vestes dos operários que integram a obra. As cores, particularmente suas tonalidades e nuances de tons, não foram respeitadas e o mural ficou com um aspecto “chapado”. É importante salientar que a filosofia e a ética da restauração moderna têm como um dos seus principais postulados a manutenção da característica da obra original. A camada pictórica é, pois, a parte mais importante de uma obra de arte, já que ela é a própria essência do bem cultural; maculá-la é falseá-la, é ultrajá-la. Uma obra inteiramente repintada perde sua característica, sua originalidade, passa a ser vista como um pastiche, uma falsificação.

Nos autos não consta o nome da pessoa que se responsabilizou pelo “pseudo-restauro”; certamente trata-se de alguém contratado pelo IBAMETRO, quando da realização de alguma reforma ou pintura no prédio. A repintura do mural parece ter sido realizada por profissional alheio à área do restauro, portanto não configura uma intenção de falsificá-la, mas é o resultado de imperícia e desconhecimento das técnicas e filosofia de restauro. […]

Um profissional especializado em restauro jamais executaria uma intervenção nos moldes em que aquela foi realizada no mural, uma vez que a filosofia e a ética da restauração moderna procuram valorizar a obra do artista respeitando ao máximo sua criação. O restaurador é um profissional treinado a intervir exclusivamente na parte deteriorada da obra de arte, mantendo as restantes conforme o artista as concebeu, inclusive deixando as marcas do tempo. Repintar inteiramente uma obra de arte é macular a sua originalidade, tornando-a um arremedo do que foi. A pincelada do artista e a tonalidade das cores são partes integrantes da obra de arte e não podem ser adulteradas”.

A doutrina civilista costuma classificar as obrigações de fazer em fungíveis e infungíveis. As primeiras são aquelas em que a pessoa do devedor pode ser substituída, enquanto, nas últimas, a pessoa do devedor é insubstituível. São as chamadas obrigações intuitu personae, personalíssimas. Vê-se, portanto, que o IBAMETRO, equivocadamente, pensou que restauração de uma obra de arte plástica pode ser feita por qualquer pintor de parede. Ledo engano. Há toda uma técnica para esse serviço, que exige, sem dúvida, pessoal qualificado.

Além do direito moral à integridade da obra, a prerrogativa extrapatrimonial à designação de autoria (Lei 9.610/1998, art. 24, II) também foi violada. A assinatura do artista (“Ângelo Roberto”), com a “pseudo-restauração”, foi apagada, removida. Não bastasse a gravidade desse ato, os réus agiram, no processo, com abominável desdém, questionando, inclusive, a autoria do mural. Após o grave erro cometido, não se redimiram. Ao revés, ampliaram a postura desrespeitosa em relação ao autor, dizendo que não havia nos autos prova de ser ele o verdadeiro criador intelectual.

Sim, tanto o IBAMETRO quanto o Estado da Bahia, em suas peças contestatórias, questionaram a autoria da obra, o que demonstra um total descaso do Poder Público pelo seu patrimônio artístico e cultural! Ora, toda a classe artística baiana sabe que a autoria do referido mural é de Ângelo Roberto. Não havia motivos razoáveis para tanto menosprezo. O Estado da Bahia, em suma, agiu da seguinte maneira: “Prove que a autoria da obra é sua…”. Como quem diz: “Olha, nós nem lhe conhecemos…”. “Quem é você?” O Estado da Bahia não pode reduzir artistas plásticos à condição de insignificância, e obras de arte à condição de anônimas.

O Juízo da 6ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Salvador condenou o IBAMETRO, por danos morais, em R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais), determinando, ainda, que a autarquia pagasse ao autor o valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) para que fosse restabelecido o painel com a imagem originária da obra destruída. O Tribunal de Justiça do Estado da Bahia manteve in totum a sentença, afirmando, com acerto, que houve ofensa aos direitos morais à paternidade e à integridade da obra, previstos no art. 24, incisos I, II e IV da LDA-98.[25] E, por fim, o Superior Tribunal de Justiça manteve, na íntegra, a condenação por danos morais proferida pelo TJBA.[26]

Enfim, pode-se concluir que o direito moral à paternidade de obras de artes plásticas consiste num importante direito previsto no art. 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, e no art. 6º bis da Convenção de Berna, da qual Brasil e México são signatários.

 

 

REFERÊNCIAS

 

ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

AZEVEDO, Philadelpho. Direito moral do escriptor. Rio de Janeiro: Alba, 1930.

BASSO, Maristela. O direi­to inter­na­cio­nal da pro­prie­da­de inte­lec­tual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.

CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu. Direito de autor e direitos da personalidade: reflexões à luz do Código Civil. Tese de concurso para Professora Titular do Departamento de Direito Civil. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo: 2008.

CUPIS, Adriano de. Os direi­tos da per­so­na­li­da­de. Tradução de Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana Jurídica, 2004.

GULLAR, Ferreira. Sobre Arte Sobre Poesia: (uma luz do chão). Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.

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KAHLO, Frida. Cartas apai­xo­na­das de Frida Kahlo. Compilação de Martha Zamora; Tradução de Vera Ribeiro. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

­LIPSZYC, Delia; VIL­LAL­BA, Carlos A. El dere­cho de autor en Argentina. Buenos Aires: La Ley, 2001.

MORAES, Rodrigo. Os direitos morais do autor: repersonalizando o Direito Autoral. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

PARAI­SO, Juarez. Desenhos e Gravuras. Salvador: Casa de Palavras, 2001.

ZANINI, Leonardo Estevam de Assis. Direito de autor. São Paulo: Saraiva, 2015.

 

NOTAS

[1] Advogado. Procurador do Município do Salvador. Professor de Direito Civil, Direito Autoral e Propriedade Industrial da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito Privado e Econômico pela UFBA. Pós-Graduado em Direito Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Bahia (UFBA). Presidente da Comissão de Propriedade Intelectual da OAB-BA (triênios 2019-2021 e 2022-2024). Diretor e sócio da Associação Brasileira de Direito Autoral (ABDA). Sócio da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI). Representante Seccional (BA) da ABPI (biênio 2022-2023). Sócio da Associação Portuguesa de Direito Intelectual (APDI). Sócio do Instituto Interamericano de Direito de Autor (IIDA). Foi presidente da Comissão de Educação, Cultura, Esporte e Lazer da OAB-BA, triênio 2007-2009. Membro da Comissão de Cultura e Arte do Conselho Federal da OAB (2019-2021). Consócio do Instituto dos Advogados da Bahia (IAB). Autor do livro “Os direitos morais do autor: repersonalizando o Direito Autoral” (2ª edição, Lumen Juris, 2021) e “Evolução da Gestão Coletiva de Direitos Autorais no Brasil: do rádio ao streaming” (Lumen Juris, 2021). Coordenador dos livros “Estudos de Direito Autoral em homenagem a José Carlos Costa Netto” (EDUFBA, 2017) e “Estudos de Direito Autoral em homenagem a Hildebrando Pontes” (Lumen Juris, 2022) e “Propriedade Intelectual no Cinema” (Edufba, 2022). E-mail: rodrigo@rodrigomoraes.com.br.

[2] CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu. Direito de autor e direitos da personalidade: reflexões à luz do Código Civil. Tese de concurso para Professora Titular do Departamento de Direito Civil. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo: 2008, p. 141-143.

[3] MORAES, Rodrigo. Os direitos morais do autor: repersonalizando o Direito Autoral. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

[4] GULLAR, Ferreira. Sobre Arte Sobre Poesia: (uma luz do chão). Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p. 41-45.

[5] ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 180-181.

[6] ­LIPSZYC, Delia; VIL­LAL­BA, Carlos A. El dere­cho de autor en Argentina. Buenos Aires: La Ley, 2001, p. 90.

[7] CUPIS, Adriano de. Os direi­tos da per­so­na­li­da­de. Tradução de Afonso Celso Furtado Rezende. Campinas: Romana Jurídica, 2004, p. 354.

[8] HAM­MES, Bruno Jorge. O direi­to de pro­prie­da­de inte­lec­tual. 3. ed. São Leopoldo – RS: Unisinos, 2002, p. 75.

[9] ZANINI, Leonardo Estevam de Assis. Direito de autor. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 362.

[10] AZEVEDO, Philadelpho. Direito moral do escriptor. Rio de Janeiro: Alba, 1930, p. 98.

[11] Por exem­plo, na Espanha, o Tribunal Supremo, em deci­são de 03 de junho de 1991, jul­gou pro­ce­den­te o pedi­do de dano moral for­mu­la­do por um artis­ta plás­ti­co que, após ter empres­ta­do gratui­ta­men­te 47 qua­dros de sua auto­ria, em per­fei­to esta­do de con­ser­va­ção, a um cen­tro cul­tu­ral, para que fos­sem expos­tos ao públi­co, rece­beu-os com inú­me­ros danos, por causa do trans­por­te rea­li­za­do ina­de­qua­da­men­te.

[12] Disponível em: http://museopalaciodebellasartes.gob.mx/mural01/. Acesso em: 08 abr. 2023.

[13] BASSO, Maristela. O direi­to inter­na­cio­nal da pro­prie­da­de inte­lec­tual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, pp. 196-197.

[14] KAHLO, Frida. Cartas apai­xo­na­das de Frida Kahlo. Compilação de Martha Zamora; Tradução de Vera Ribeiro. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002, pp. 137-141.

[15] ­MORAES, Rodrigo. In A obra de Juarez Paraiso. Coordenação de Washington Falcão. Salvador: Juarez Paraiso, 2006, p. 107-108.

[16] Inúmeras maté­rias jor­na­lís­ti­cas denun­cia­ram a des­trui­ção, a exem­plo de A TARDE, edi­ções de 06 e 28 de maio de 2000, Correio da Bahia, edi­ções de 09 de maio de 2000 e 02 de novem­bro de 2003, Tribuna da Bahia, edi­ção de 06/07 de maio de 2000.

[17] Tive a honra de ser o advo­ga­do de Juarez Paraiso, jun­ta­men­te com o saudoso José Borba Pedreira Lapa. Sem dúvi­da algu­ma, o pro­ces­so, sob n. 140.00.791.889-3, trans­for­mou-se em impor­tan­te pre­ce­den­te juris­pru­den­cial.

[18] FER­REI­RA, Carla. Igreja é con­de­na­da por des­truir obras de arte. A TARDE, Salvador, 17 maio 2002, p. 4.

[19] ONU con­fir­ma des­trui­ção de Budas gigan­tes. Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 mar. 2001, p. A10.

[20] PARAI­SO, Juarez. Desenhos e Gravuras. Salvador: Casa de Palavras, 2001, pp. 7-8.

[21] Idem, pp. 90-91.

[22] O Ministro José de Jesus Filho enten­deu que não houve dano moral, citan­do bizar­ra pas­sa­gem do acór­dão do Tribunal minei­ro, que nega a teo­ria aqui defen­di­da sobre o direi­to moral: a de que uma obra de arte con­sis­te em pro­je­ção da per­so­na­li­da­de do seu autor; exte­rio­ri­za­ção, pro­lon­ga­men­to, irra­dia­ção de seu espí­ri­to cria­ti­vo. In ver­bis: “O admi­rá­vel Painel con­ti­nua a engran­de­cer sua Criadora. O patri­mô­nio ideal, a per­so­na­li­da­de psí­qui­ca, a honra e a boa fama não foram lesa­dos, mas, tão-só, a exte­rio­ri­za­ção mate­rial, con­se­quen­te à neces­sá­ria remo­ção. Se repa­ra­ção há, seria ao Quadro, não à sua Criadora”. Por fim, afir­mou, equi­vo­ca­da­men­te, o refe­ri­do Ministro: “A ques­tão não é de dano moral e sim mate­rial, mas este não foi pos­tu­la­do. Pelo expos­to, não conhe­ço do recur­so. É o meu voto”.

[23] Eis a ementa: “Indenização. Danos morais. Destruição de obra de arte pertencente ao patrimônio público. Ato ilícito. Direito do autor. Indenização devida. Voto vencido.

São invioláveis a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral consequente à sua violação.

Não se paga a dor, tendo a prestação pecuniária função meramente satisfatória.

Assim como o detrimento de bens materiais ocasiona prejuízo patrimonial, “a agressão aos bens imateriais configura prejuízo moral”.

Uma vez incontroversa a existência do dano e admitida a sua responsabilidade, decorre daí ser o mesmo indenizável, não pelo simples decurso do tempo ou pelo desgaste natural, mas justamente pela comprovada destruição da obra de arte, que é a projeção da personalidade do autor.

(STJ, Recurso Especial n. 37.374-3-MG; Relator: Ministro Hélio Mosimann; Recorrente: Yara Tupinambá; Recorrido: Município de Belo Horizonte; Data do julgamento: 28 de setembro de 1994)”. 

[24] Vale res­sal­tar que o art. 77 da LDA-98 alte­rou o equi­vo­ca­do art. 80 da LDA-73. Em se tra­tan­do de alie­na­ção de obra de arte plás­ti­ca, com a nova lei auto­ral, salvo con­ven­ção em con­trá­rio, o direi­to de repro­du­ção não mais se trans­mi­te ao adqui­ren­te, mas, ape­nas, o direi­to de expo­si­ção. Eis o texto do vigen­te art. 77: “Salvo con­ven­ção em con­trá­rio, o autor de obra de arte plás­ti­ca, ao alie­nar o obje­to em que ela se mate­ria­li­za, trans­mi­te o direi­to de expô-la, mas não trans­mi­te ao adqui­ren­te o direi­to de repro­du­zi-la.” A reda­ção do art. 80 da revo­ga­da LDA-73 era a seguin­te: “Salvo con­ven­ção em con­trá­rio, o autor de obra de arte plás­ti­ca, ao alie­nar o obje­to em que ela se mate­ria­li­za, trans­mi­te ao adqui­ren­te o direi­to de repro­du­zi-la, ou de expô-la ao públi­co”. Portanto, a refe­ri­da deci­são do STJ, nesse deta­lhe, ainda está basea­da na anti­ga LDA-73. De qual­quer sorte, a fun­da­men­ta­ção, com base no direi­to moral à inte­gri­da­de, per­ma­ne­ce per­fei­ta­men­te atual. É o que inte­res­sa para o obje­to deste estu­do.

[25] TJBA, Apelação Cível nº 0037942-54.2000.8.05.0001, 2ª Câmara Cível, Relatora Desembargadora Maria do Socorro Barreto Santiago, julgamento em 14 de junho de 2011.

[26] Agravo em Recurso Especial nº 276.133/BA.

 

 

 

 

 

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